É impressionante como quando se tem uma perda e essa se
julga irremediável nasce um desejo meio que incontrolável pelo novo. Não, eu
não perdi nada, mas esse desejo nunca me deixa. Acho que no meu caso é bem o
contrário, ao invés de perder eu estou precisando é me achar. Vai saber.
E é aqui, no meio desse meu momento filosófico que começo
minha mudança. Não, não. Não é algo assim tão profundo, só decidi trocar São
Paulo por Florianópolis, e a mudança que eu digo é essa mesmo: tralhas, coisas
pra desempacotar, bagunça, coisa pra consertar e tudo mais.
Gosto do clima da nova cidade. Gosto da calmaria, apesar do
vazio que a loucura de Sampa tem me deixado. Aproveito para trabalhar e após
alguns dias as coisas vão se encaixando, vou substituindo o caos e o vazio da
minha casa e por conseqüente da minha vida. Gosto disso, dessa coisa de dizer
“minha casa”, até a sonoridade dessa frase é bonita. “Minha casa”. E agora que
tenho uma só para mim vou deixando ela a minha cara. Substitui as flores e as
fotografias velhas da sala da minha mãe pela minha coleção de discos de vinil que
estão devidamente colocados na nova estante. O quadro dos Beatles coloquei na
parede da sala perto do sofá. Sempre achei que toda sala merece ter algo dos
Beatles. Sempre achei que todo lugar merece um pouco de Beatles e por que não
minha própria sala? O meu quarto ainda é só um colchão no chão e roupas jogadas
por cima das malas, mas já é um bom começo. O meu começo. Agora é Radiohead
tocando e um copo de Whisky pra comemorar. Por enquanto tudo bem solitário, mas
amanhã quem sabe minha nova galera não apareça? É só uma questão de conhecer
uma nova galera.
Só uma coisa errada até agora, o corretor devia ter me
avisado que minha nova vizinha tem o dom de destruir músicas bacanas, em algum
lugar Dave Matthews deve estar se contorcendo. Porque não é possível que ela
cante gasguita assim e ache que está tudo certo, tudo lindo. Na verdade ela não
canta nada e alguém devia ser bacana com ela e dizer isso, assim, na lata
mesmo. Acho até que é por isso que o aluguel ficou barato no fim das contas,
famílias devem ter fugido após alguns membros enlouquecerem ou quem sabe
ficarem surdos. Tá, exagerei. Mas que às vezes irrita, irrita.
Mas apesar da voz, eu curti o gosto musical da garota e fico
imaginando como ela é. Ainda não dei a sorte (ou azar, vai saber) de encontrar
com ela pelo condomínio, o que tem alimentado ainda mais minha imaginação e tem
sido o meu passatempo favorito. Sim, tenho passado horas dos meus dias
imaginando o perfil da menina com a voz mais irritante que já ouvi. O que mais
teria pra fazer em uma cidade que não conheço ninguém e só estou morando a uma
semana do que flertar com as inúmeras mulheres que crio baseadas nas músicas
que a garota ao lado coloca pra tocar a noite?
***
Num sábado desses, acordo cedo e coloco Joe Purdy pra tocar
enquanto tento dar uma geral na casa. Sabe como é ser humano do sexo masculino,
beirando os 30 anos, recém saído da casa dos pais, filho único e afazeres
domésticos são coisas que dificilmente se encontraram na vida. Acontece que
hoje finalmente terei algumas visitas e quero que minha casa pareça com uma.
Depois de umas semanas no trabalho parece que tenho novos amigos e que eles
querem tocar violão e beber até cair na minha casa. Achei bacana a idéia.
No meio da bagunça
começa tocar Why You, uma das minhas favoritas do Joe, e de repente ouço aquela
voz desafinada acompanhando a música. Não acredito que ela conheça a minha
banda favorita e eu ainda não vi o rosto dela. Qual é? Eu preciso de um rosto pra descrever a mulher
da minha vida para os meus novos amigos. Meio idiota isso, mas sempre disse que
me casaria com uma mulher de bom gosto musical e que fosse fã de Joe Purdy sem
eu precisar apresentar a ela. Dessa vez decido subir no muro, já que nossas
casas são lado a lado e a julgar por quão perto parece estar a voz dela, acredito
que nossos quartos também sejam lado a lado. Não custa nada tentar. Talvez hoje
eu descubra se ela é ruiva e cheia de tatuagens como da primeira vez que a
imaginei enquanto ela ouvia Foo Fighters. Ou se ela daquelas garotas fofinhas
como a Zooey Deschanel,
não consegui pensar em outra forma de garota em quanto ela ouvia The
Smiths naquela terça-feira de madrugada. Mas não consigo pensar em nenhum jeito
de garota para garotas que curtem Joe Purdy, ainda não conheci numa garota que
curtia por conta própria. Pra acabar a curiosidade encosto a escada no muro e
subo, e de todos os tipos de mulher que imaginei, de todas as vezes que pensei
na gente se encontrando, nunca me passou pela cabeça o que acabei de ver. Ainda
não decidi se gostei ou não, só sei que ri bastante e ela deve estar me odiando
agora.
Parece que não sou só eu que andei de mudança pelas últimas
semanas, ou vai ver ela só decidiu fazer uma reformar, mas quando subi no muro
dei de cara com um quarto bagunçado, uma cama desmontada e uma garota só de calcinha dançando com uma ferramenta na mão. Claro, que como bom macho hétero
que sou, a primeira vista só vi a bela morena de cabelos longos, cintura fina e
seios nem grandes e nem pequenos, mas que cabem exatamente na palma da minha
mão, e por alguns segundos imaginei minhas mãos naquelas maravilhas, assim como
naquelas coxas roliças e bem desenhadas. Deus, que morena.
Depois que consegui
tirar os olhos da pequena e comecei a olhar ao redor foi que percebi a parte
hilária da situação, não bastasse a moça quase desnuda, dançando com uma
ferramenta na mão enquanto, acredito eu, desmontava uma cama, um pequeno
detalhe foi que me fez gargalhar. A dona da voz que me incomoda noites sim,
noites não, vestia apenas uma calcinha daquelas de algodão, bem infantis e um
pouco velha, sem muito elástico, me arrisco a dizer. Achei aquilo tudo tão
lindo e bizarro ao mesmo tempo que minhas risadas sonoras invadiram o quarto da
moça que me olhou assustada, logo depois envergonhada e por último enfurecida.
Quando ela percebeu minha presença se abaixou em frente a janela e timidamente
olhou pra ver se eu ainda estava lá, e eu, de uma forma imbecil, estava. Não
sei por que fiquei ali, mas estupidamente quis puxar assunto, e puxei. Não é
todo dia que isso acontece e sabe, acho que a gente tem que se arriscar.
A Paz de Jah!
;*